31/12/2010


Naquele dia choviam estrelas e todos os contornos brilhavam. Mesmo os ventiladores velhos cheiravam a recomeço, reviravolta, limite e largada. Pensei ter visto um anjo, os cabelos levemente encaracolados, orgulhosamente despenteados pelo vento do verão. Levava livros como se fossem filhotes, falava como se houvesse verdade. Ele segurou minha mão quando tudo desabou, limpou as estrelas que escorriam pelas bochechas, acompanhou com habilidade o desespero que invadia, o novo que se abria e sorriu.

Maldita seja sua sexualidade duvidosa.
Malditos sejam seu ódio explosivo, sua curiosidade pelo novo, sua revolta.
Malditos seus aliados, suas lágrimas vazias, suas traições, seu ateísmo.
Maldita sua fala, sua língua e seu silêncio.
Malditas sejam suas mãos, seu carinho e seu amor.

Não deixe ele entrar.

14/12/2010

Enquanto a água escorria gelada pelos cabelos escuros e lisos o som do mundo mudava. O barulho das aves transformou-se em agonia, desespero e morte (morte mesquinha).
Mas quando retirou os ouvidos da água as coisas estavam como sempre foram.
Sentados na praia, pensavam em alianças, guerra e marcas (queimaduras, cortes, furos e tintas).
Não havia pai, nem mãe, nem irmãos ou irmãs.
Inconscientes perfeitamente órfãos.
Longe no horizonte marítimo viu-se a grande nuvem carregada se aproximar.
Antes de sua forma estava seu cheiro de corpos velhos, estragados, apodrecidos.
Seu desenho não era claro.
No princípio era peça, em seguida Édipo, corpos cobertos, Kardec ou medo do céu aberto.
Sua forma final, porém, era clara.
A cruz fétida chegou.

13/12/2010

já era quase manhã, mas o vento fresco da madrugada ainda não havia desaparecido
o gato dormia e ela também
um aqui outro lá, ambos em paz
Alice sonhava ou sonhava com Alice –
menina de biquíni na beira da estrada
traçou um destino, um dos planos falhou, mas gozou assim mesmo
era sempre assim: poucos importam
e isso já era muita coisa

03/12/2010

Ela veio deslizando um pouco acima do asfalto
Pousou com passos firmes
Estava vestida em sombras, prenha e faminta
Não havia pernas, apenas agulhas ou facas
Cravou os dentes onde bem quis, levou consigo um pedaço da pele dos braços, um pouco de sangue, saliva e esperma.

Agora toda noite é Falta.
Le Bal des musiciens
  • Você aceita seus braços cortados, seus olhos sempre vedados, para uma união feliz e duradoura?
  • Aceita seus delírios noturnos, seus desejos de destruição, de todo o entorno, inclusive e principalmente dele mesmo, como sentimentos que estarão sempre presentes entre vocês?
  • Não sucumbirá perante o eterno o estrago, a fenda negra e as lágrimas amarelas?
  • Recebe com felicidade a adoração da escuridão, das asas sombrias e do vento noturno, para fazer deles também algo seu?
  • Promete lacrimejar, enquanto ele agoniza em remorso e ordena em vão as coisas ao redor?
  • Reconhece a morte que ele carrega consigo e seu desejo de despossuí-la, de entregá-la, amá-la ou sufocá-la até que a morte os separe?

01/12/2010


a estátua de gelo estava do lado de fora
sobreviveu ao inverno e também ao verão
seu rosto era sem dúvida feminino
quanto ao resto não se podia ter certeza: parecia um misto de homem e réptil
havia calda e pernas, escamas e pênis
seu controle sobre a casa restringia-se aos espaços que seu olhar alcançava:
um pedaço do quarto, boa parte da sala e do corredor
quem passava ali evitava fitá-la diretamente
a maior parte deles o fazia por puro instinto
o mais sensível era o macaco, ele atravessava o corredor com rapidez, não gostava da sala e nunca entrava no quarto
ele vinha das terras geladas e seus pelos o protegiam do frio, a ponto de ser um incômodo naquele ambiente tropical
mas era outro o tipo de gelo que emanava da estátua
nenhum outro frio ia tão fundo, nenhum outro frio atravessava
contra o frio das montanhas estava o calor do fogo ou os seus pelos grossos
contra o frio da estátua estava o calor do chicote ou as mãos dadas
o macaco finalmente resolveu destruí-la
com uma simples martelada ela se estilhaçou
como se ansiasse por isso
transformou-se em um pó muito fino e delicado
o macaco reuniu o que pode daquela areia-gelo e guardou tudo em uma sacola transparente
assim como a estátua, a frieza do pó se mantinha inalterada
o macaco-zumbi derramou um pouco do pó em sua mesa, dividiu os minúsculos pedaçinhos de gelo em linhas e, com um pequeno canudo, o cheirou
o chicote que descia em direção a suas costas se deteve, congelado
a avalanche de desejo que empurrava seu martelo morreu
o macaco-zumbi ou macaco-martelo mudou de espécie
não possuía mais nome
nem sexo
além disso, suas principais mudanças foram as seguintes:

1.  não salta, rasteja
 2. não ingere, expele
3. não caga, berra
4. não sorri, amaldiçoa
5. não se move, espreita
6. não adoece, morre inúmeras vezes
7. não acaricia, rouba
8. não manipula, gargalha
9. não maquina, pensa
10. não adora, rói