19/06/2010


O macaco-zumbi atravessou a cidade.
Pensava no fim do socialismo soviético enquanto observava as coxas da travesti que fazia programa na esquina.
Na cabeça um buraco, nos bolsos, alguns trocados.
A lua sorria (literalmente) e voava baixo, amarela como o tártaro em seus dentes.
Seu mau hálito era intenso, sua saliva empesteava tudo, fedia.
O macaco-zumbi tomava remédios para doenças que nunca teve, mas não se medicava contra as doenças que o corroíam por dentro, ou por fora;
Passeava por ruas escuras, sem saber onde terminavam, mas não estava perdido.
Sabia que só se perdiam aqueles que desejam chegar, que têm um objetivo qualquer.
Conhecia impecavelmente o funcionamento de sua sociedade.
Eram três as suas camadas:


1. Os loucos, os mendigos, os criminosos, enfim, os desajustados, eram o centro: quase tudo fugia ou girava em torno deles.


2. Fora do centro do vortex estavam os macacos corredores, eles pulavam, amavam-se, espancavam-se, uns corriam mais, outros menos, uns se divertiam mais, outros menos, mas, invariavelmente, corriam.


3. Para além do poder de atração do vortex estava o misterioso fora, o espaço selvagem, a força da destruição.


De maneira desajeitada – cambaleante, drogado e bêbado – o macaco-zumbi corria;
mas sonhava em pular para fora.
Sabia que morreria, mas ainda assim tentou algumas vezes saltar pela diagonal e se espatifou contra a parede cortante e fluida que separava o fora e o dentro.
Exibia suas cicatrizes com orgulho, embora continuasse escrevendo relatórios, atrasados, inadequados, mas que, no final, estavam lá.

O macaco gostava de andar só pelo escuro e pelas sombras;
Sua pouca coragem baseava-se apenas na constatação empírica de que o medo da violência física que assombrava os outros corredores era inútil ou infundado.
Não lhe incomodava a clara consciência de que seu trabalho e suas investigações não tinham qualquer finalidade, eram totalmente inúteis.
Vez por outra o macaco enunciava verdades, às vezes fazia sucesso, às vezes era um fracasso, mas, em um caso como no outro, pouca diferença fazia.
O macaco-zumbi atravessou a cidade
e escovou os dentes.

Um comentário:

  1. se cada coisa escrita tivesse o poder de me deixar tão sem palavras quanto as idéias absurdamente belas, tristes e quase infantis que vem de você, eu jamais falaria.

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