07/03/2010

Arame


Acordei e estava sobre o arame farpado. A princípio achei que havia simplesmente caído ali, mas logo notei que estava aprisionado intencionalmente, meticulosamente. Todos os movimentos provocavam dor, especialmente no rosto: as bochechas e os ouvidos pareciam prestes a serem arrancados ao menor movimento. A espécie de altar onde eu me encontrava erguia-se um pouco acima do chão e a única direção para a qual meu rosto podia enxergar mostrava uma pequena trilha, perfeitamente reta, aberta provisoriamente em meio a uma área seca e arenosa. Podia-se dizer que se tratava do salão de um rei, a não ser pelo fato do rei estar aprisionado, sangrando em seu trono, o tapete vermelho reduzir-se a um caminho precário de pó e o salão não conter teto ou paredes para proteger do vento e da poeira.



Uma primeira figura apareceu caminhando pela trilha. Demorei a reconhecê-la, parecia mais velha e cansada do que usualmente, mas era sem dúvida D.1. Meu coração se encheu de alegria, não me sentia mais sozinho e já imaginava sua calma e suas habilidades em ação para me retirar daquele arame e fazer parar a dor e o sofrimento. Porém, ao se aproximar de mim ele disse: “Meu filho, você está aqui por um motivo, não cabe a mim explicá-lo, mas para entender o que se passa basta que você utilize os órgãos que você mesmo retirou de mim”. Em meio ao desespero eu não havia notado, mas quando olhei novamente para seu rosto vi que não havia olhos, no lugar deles estavam cortes, costurados de forma amadora com um fio grosso e preto. Sem dizer mais nada D.1 se retirou para a direita, para um ângulo em que eu não podia vê-lo mais. Não podia dizer se ele havia ido embora ou apenas permanecido ao meu lado.


Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, outra figura já se insinuava, caminhando pesadamente. Notei que também o conhecia, mas desta vez não sabia o que esperar. D.2. olhou para mim e levantou sua mão direita: três dedos haviam sido cortados. Os cortes eram extremamente precisos, mas não foram feitos na mesma altura, indicando, talvez, terem sido três situações diferentes as que lhe retiraram os dedos, deixando apenas o polegar e o indicador. “Agora dificilmente posso exercer minha profissão” disse D.2., e se retirou na mesma direção que D.1.


Eu estava cansado, sem saber se o que escorria pelo meu rosto era suor ou sangue, por isso não notei a aproximação da terceira figura. Dessa vez demorei mais a reconhecer. Era M.1! Não a reconheci porque ela não tinha mais cabelos, ou, ainda pior, possuía apenas alguns fios que se espalhavam de forma aleatória pela cabeça. Uma injeção estava pendurada em seu braço esquerdo e o furo sangrava levemente. Seus olhos não cruzaram os meus e seus lábios não disseram uma única palavra, como se ela já tivesse notado em mim o completo entendimento do que estava acontecendo. Ali estavam as pessoas de quem eu havia arrancado pedaços do corpo.


Em seguida, caminhando de forma saudável, mas desastrada, vinha M.2. Ao se colocar na minha frente ela desabotoou sua camisa e mostrou o peito. Não havia qualquer dúvida do que faltava ali: um coração. Eu já não queria mais olhar, fechei os olhos e disse a mim mesmo que havia entendido a mensagem. Mas ela permanecia ali, como se houvesse algo que eu ainda precisasse ver. Com asco olhei novamente e observei que nem todo o coração havia sido retirado, parte dele ainda estava ali, batendo. Aos olhos atentos, a parte restante do órgão mostrava que não existiam sinais de um golpe violento. Seu coração havia sido ruído, e as partes que faltavam foram retiradas aos poucos, um pequeno pedaço de cada vez.


Depois disso apenas silêncio. E espera. Sabia que o desfile dos órgãos arrancados não tinha se encerrado, mas foi preciso um tempo para que a quinta figura aparecesse. Ela, porém, não vinha sozinha, e logo percebi por que; precisava de alguma assistência para percorrer o caminho em linha reta. Reconheci as duas figuras de imediato, era M.3., assistida por sua mãe. Até então eu não havia dito uma palavra. Foi ao vê-la de perto que comecei a gritar. Seu olhar estava perdido, não se fixava em mim e em absolutamente nada, pois toda a parte traseira de seu crânio havia sido arrancada. Ainda naquele estado, em certo momento, M.3. parecia ter me reconhecido e tentou me tocar, mas foi logo impedida pelos braços fortes de sua mãe. Ao se virar para tomar o caminho da direta seu crânio arrancado se expôs por completo e meus gritos aumentaram. No espetáculo de terror que eu mesmo havia promovido, M.3 era minha obra prima.


Nesse momento pensei que minhas visitas haviam se encerrado e a idéia de morrer naquele pedaço seco de mundo já não me parecia mais assustadora. Foi quando o menor de todos os meus visitantes apareceu. Era a pequena, r., e, especialmente dela, não sabia o que esperar. Ela andava normalmente, olhava pra mim com alegria e, mesmo eu assemelhando-me mais a uma terrível figura do masoquismo, olhava-me com seu belo olhar de cima pra baixo, exatamente como fazia enquanto eu possuía forças para ser seu Senhor. Foi a primeira vez que consegui articular uma frase e disse. “r., de você eu não arranquei nenhum órgão, arranquei?”. Sua alegria repentinamente se encerrou e ela falou “Você pode me chamar de r., mas aqui, nesse lugar, meu nome é Futuro”. E fez-se silêncio. Alguns minutos sem palavras se passaram e ela falou novamente: “Lembra-se se sua banda preferida?”, começou a cantar “The light breathes, the highest execution. Show me the wings I must cut”. Então ela se virou, retirou a camisa preta de bolinhas brancas que eu havia atirado pela janela e dois enormes cortes verticais se mostraram, atravessando de forma paralela suas costas. Eu não conseguia entender como a música se relacionava com aqueles cortes. Perguntei “eu estraguei sua tatuagem? É isso?”. “Não”, disse ela, “você arrancou minhas asas”.


Repentinamente todas as pessoas estavam em minha frente; e seis mãos direitas me retiraram suavemente de minha prisão. Apesar de estar cortado e sangrando, não senti nenhuma dor ao ser retirado do arame farpado. Sem conseguir me erguer para me defender, esperei ser atacado, esmagado, espancado ou até mesmo devorado, mas quando consegui me levantar e enxergar com atenção observei que, em cada um deles, a seu próprio modo, havia algum tipo de amor por mim. Havia também dor, tristeza, decepção e lágrimas, mas não havia ódio. Tentei farejá-lo, como um cão policial, e desejei encontrá-lo, mas não encontrei nenhum traço. Quando a perfeita consciência disso se instalou em mim uma dor ainda maior do que a dos arames farpados cresceu, era uma força horripilante, que surgia de dentro para fora, eu berrei e caí em agonia, em meio aos meus próprios berros percebi que, finalmente, estava ali o que procurava nos outros: ódio em estado puro, vontade de destruir, retalhar, arrancar, esmagar até o fim tudo que há de bom, que corre leve, sutil e alegre. Em meio aos seres que despedacei, cortado e rasgado, era ainda eu quem feria, machucava, odiava, detestava, destruía.

Um comentário:

  1. ah, se seus sonhos soubessem que, foi você quem curou as asas machucadas de b. para que ela pudesse voar de novo, talvez, mas só talvez, você tivesse finais mais felizes.

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